domingo, 6 de julho de 2008

carpe diem

cruzamo-nos pela última vez na escadaria de acesso restrito onde habitualmente professores e funcionários se encontram ao percorrerem, invariavelmente apressados, sentidos opostos. era quarta(talvez quinta)-feira desta semana. já nem me lembro se era eu quem subia ou descia naquela oportunidade. lembro-me apenas de havermos trocado, como de costume, rápidas palavras cordiais de saudação e despedida, e de sentir-me levemente constrangida com a minha incurável mania de encurtar, em tom de intimidade, o nome de pessoas pelas quais nutro tímido, mas real, apreço. se eu soubesse que não mais o veria com vida, certamente teria lhe dado um abraço e falado do prazer que tinha sido encontrá-lo, como colega de ofício, nesta fugaz existência.
uma semana antes tínhamos tido a oportunidade de conversar com um pouco mais de calma, sentados que estávamos na coordenação, onde ele tinha ido verificar os horários do semestre que vem – semestre que, a despeito de todo o planejamento, ele não mais lecionará. na ocasião, lembro-me de havê-lo indagado o porquê de tanta pressa, de tanta atividade simultânea, sem entender exatamente como ele conseguia tempo para coordenar um curso de direito numa faculdade e dar aulas em duas outras, com o agravante de localizar-se uma delas fora da capital. em resposta ele me disse, com a ansiedade comum a todos aqueles que instintivamente pressentem o pouco tempo de que dispõem neste plano, que eu esquecia ainda da militância como advogado, do envolvimento freqüente em atividades da oab e do rotary, da esposa e do pequeno arthur, e da paixão pelo pára-quedismo, herança familiar do avô militar. lembro-me de havê-lo ligeiramente repreendido, destacando o perigo desnecessário dessa prática esportiva.
ontem ele foi a primeira pessoa que me veio à cabeça ao acordar. como coordenadora, sentia-me responsável por adverti-lo a respeito do cancelamento da disciplina de férias que ele daria na faculdade a partir de amanhã. a cancelamos por não contarmos, até o final do dia da última quinta-feira, com o número mínimo de alunos matriculados que justificasse o fechamento da turma. sabendo que ele estava em são paulo, e imaginando que talvez ele tivesse programado retornar no domingo apenas em função do início das aulas, quis oportunizar uma extensão da viagem, se ele assim entendesse conveniente. minha primeira providência do dia, portanto, foi enviar-lhe um e-mail avisando – e-mail que, a julgar pela ausência de resposta, ele jamais chegaria a ler. mal sabia eu, então, que caberia a mim, como última providência daquele mesmo sábado, enviar outro e-mail, desta vez para a larga lista de nossos docentes, comunicando a triste notícia de seu falecimento prematuro.
dona morte anda solta neste bissexto estranho e parece-me bastante prudente que a tratemos com toda a deferência. desafiá-la com saltos de pára-quedas e outras imprudências é de todo desaconselhável. dona vida, de sua parte, mostrou-se uma vez mais impermanente e imprevisível, e deixou-nos a todos consternados e a mim, em especial, (over)pensativa.
episódios como esse nos lembram, inevitavelmente, de nossa própria mortalidade. nos fazem repensar a vida e a maneira como a estamos conduzindo. deveria-nos mudar radicalmente o foco, as prioridades, o timing. mas não mudam mais do que por alguns poucos dias, o que eu avalio como uma tosca característica de nossa imperfeita humanidade. enquanto o sentimento está bem fresco, escrevo para eternizar minha impotência absoluta diante do imponderável, minha incalculável tristeza íntima de lembrar que cada dia desta vida é mais um dia a menos que um dia a mais. escrevo também, queridos, para pedir-lhes, como vinícius, que tomem vento, que tomem tento, que vivam o hoje, que amem em tempo integral, que se cuidem muito, que peçam proteção divina e que não se esqueçam que "esta vida é uma estranha hospedaria, de onde se parte quase sempre às tontas, pois nunca as nossas malas estão prontas, e a nossa conta nunca está em dia."

3 comentários:

  1. ôh tri, pena mesmo um evento desses te levar a escrever tão precisas linhas!

    Do lado de cá fico eu, vivendo e deixando viver, torcendo por um cadim de piedade do sr tempo.

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  2. nada como a morte, sobretudo as prematuras para nos fazer pensar na vida.

    há dois anos enterrei um amigo. aos 26 anos foi vencido após um árdua batalha contra um problema no fígado.
    acompanhei diariamente seus últimos meses na área de hematologia do hospital das clínicas e nunca vi em situação nenhuma da minha tão normal e saudável vida, pessoas darem tanto valor a vida como aquelas com as quais convivi por aqueles meses abençoados.
    no dia do seu enterro, no muro do cemitério estava escrito..."é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã"...claro, comotantos outros jovens da década de 80 eu já tinha ouvido esta frase...mas realmente só passou a fazer sentido após aquele 17 de abril.

    também me arrependi dos abraços que não dei no meu amigo e de não ter falado para ele o quanto ele era corajoso e o quanto eu o admirava...apesar de achar (ou esperar) que ele saiba disso...

    beijos
    mariah

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  3. amei a delicadeza deste texto.
    viver é mesmo uma responsabilidade, não podemos nos deixar morrer em plena vida.
    perdas nom lembram disso, pena que a gente esquece rápido.

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